Quero compartilhar nas três próximas postagens o artigo de excelência escrito por Ricardo Quadros Gouvêa no Site da FTL Brasil.
Missão Integral é um assunto que gosto de pesquisar devido sua importância para a Igreja do Senhor.
Parte 1.
I. Palavras Introdutórias
Muito já se escreveu sobre missão integral. Os livros recentemente lançados
sobre o assunto, o de René Padilla e o de Ricardo Gondim, perfazem juntos uma
boa síntese do que se entendeu teologicamente até hoje por missão integral e os
problemas desse construto teórico, bem como de sua aplicabilidade na vida das
igrejas evangélicas e dos movimentos evangélico e/ou evangelical.
Teremos em breve encontros em que debateremos estas obras com seus autores.
Sendo assim, o que propomos para hoje? Proponho um exercício de reflexão
teológica conjunta a partir de um texto que servirá meramente como
ponto-de-partida, que não se pretende original ou inovador, mas sim
esclarecedor.
Não sei, entretanto, se eu entendo bem o que quer dizer “missão integral” ou o
que é a “teologia da missão integral”. Vejo discursos e práticas desalinhadas
sob esse mesmo rótulo, e fico com a sensação de que há desinformação e
dissonância cognitiva, o que pode e deve ser resolvido, além de uma salutar
discordância e variação nuançada, o que é positivo, mas convida ao diálogo.
Este texto busca, portanto, ainda que modestamente, auxiliar na caminhada em
direção a uma resposta acerca do significado do construto teórico teológico
“missão integral”, tão importante na história da Fraternidade Teológica
Latino-Americana.
Estou convencido que há dois estudos propedêuticos que se fazem necessários
antes que exploremos o conceito de missão integral propriamente, tentando uma
aproximação mais acurada de definição ou de identificação. Passo agora,
portanto, a essas duas excursões breves em teologia filosófica ou teologia
cultural ou ainda teologia apologética, como se dizia antigamente. Estas duas
excursões lidam com as relações entre evangelho e cultura, primeiro e, depois,
entre evangelho e política.
II. Evangelho, Cultura e Política: Duas Excursões Teóricas
1. Evangelho e Cultura
Esta sempre foi uma relação de grande tensão na história do cristianismo. Hoje
compreendemos que não poderia deixar de ser. Evangelho e cultura se distinguem,
mas não é fácil distingui-los. O Evangelho não existe a não ser enculturado,
isto é, contextualizado. Há quem queira separar o Evangelho da cultura, mas
isso nunca existiu, e não pode ser feito. É da natureza do Evangelho ser
cultural. O Evangelho já nasce inserido numa cultura, a cultura judaica, mas
não se confunde com ela. Esta é a tensão infinitamente elástica que nos causa
tantos transtornos: o Evangelho não é a cultura, nem mesmo a cultura judaica,
mas só existe imiscuído e misturado com a cultura, de tal forma que não é
possível extraí-lo e limpá-lo da cultura sem causar dano à natureza intrínseca
do Evangelho e também à cultura. Se tentarmos distinguir cultura de Evangelho,
fica um pouco de cultura, perde-se um pouco de Evangelho, e não se obtém um bom
resultado.
A primeira transposição cultural sofrida pelo Evangelho foi para a cultura
helenista dos tempos da chamada igreja primitiva. Essa transposição foi feita
com razoável sucesso, mas não sem fortes traumas. É uma transposição que começa
com Paulo, e é, portanto, sancionada pelo próprio Evangelho, pelas Escrituras
Sagradas. Mas o Novo Testamento também já dá testemunho dos traumas e aflições
causados pela transposição. O relativo sucesso do empreendimento deve nos fazer
perceber as tremendas transformações sofridas pelo Evangelho no mundo
helenista, e, em particular, a leitura de tendências neoplatônicas e
semi-gnósticas que acabaram por preponderar no período patrístico, e acabaram
por servir de base para a construção da teologia.
Uma segunda transposição acontece no período medieval, e posteriormente no período
moderno, e sempre sofreu o Evangelho transformações, assim como transformou as
culturas. Com o surgimento das nações-estado modernas, e com o crescimento
econômico e populacional advindo das revoluções científica e industrial, surge
um grande número de culturas ocidentais distintas promovendo novas tensões com
o Evangelho herdado, e o trabalho missionário leva o Evangelho para culturas
não-européias, que iriam absorver o evangelho misturado à cultura dos próprios
missionários.
Os missionários das igrejas protestantes históricas trouxeram ao Brasil um
Evangelho marcado pelos traços culturais de onde eles haviam partido. Foi só no
século XX que a relação Evangelho e cultura passou a ser mais estudada e
compreendida. Começou-se a perceber a enorme complexidade do processo
enculturação do Evangelho, e se começou a falr, no fim do século XX, em
contextualização.
O grande cientista da religião Helmut Richard Niebuhr, irmão do célebre teólogo
Reinhold Niebuhr, foi um dos pioneiros nesse estudo, com o clássico Cristo e
Cultura, onde distingue cinco diferentes possibilidades compreensão do
relacionamento entre Evangelho e Cultura, que ele denomina: (i) Cristo contra a
cultura; (ii) Cristo da Cultura; (iii) Cristo acima da cultura; (iv) Cristo e
Cultura em Paradoxo; e (v) Cristo transformador da cultura. Niebuhr nos mostra
como todos os cinco “tipos” (“tipos ideais”, como ele diz) foram praticados e
implicitamente ensinados através dos tempos. No entanto, sugere que os
primeiros dois são enganosos, distorções, o primeiro pela rejeição da cultura,
e o segundo pela sua adoção não criteriosa ou sem qualificações necessárias.
Eles representariam, grosso modo, os pólos fundamentalista e liberal. Os três
outros tipos estariam, segundo o autor, mais de acordo com aquilo que o Novo
Testamento propõe, o terceiro representando a posição tomista, o quarto a
posição existencial-dialética, e o quinto a visão mais comum na teologia
contemporânea.
Ao que me parece, a teologia da missão integral se propõe partidária, acima de
tudo, da quinta possibilidade, de ver Cristo como transformador da cultura, sem
negar a importância e o valor da cultura, como no caso principalmente do
primeiro tipo niebuhriano, mas também do terceiro, típico do mundo evangélico
conservador (que é em grande grau tomista sem saber disso). Trata-se, portanto,
de trazer o Evangelho à cultura para redimi-la, não para alterá-la. Isso está
de acordo com o que dissemos a princípio: o Evangelho só é verdadeiramente o
Evangelho quando está enculturado, inserido na cultura e contextualizado, e só
assim não é distorção.
Em suma, Cristo é mais, muito mais do que normalmente pensamos. Cristo
significa uma vida melhor não só para o indivíduo, mas para a nação. O
Evangelho propõe um mundo melhor, e nos convida a promover esta integração do
Evangelho às culturas humanas em particular, e aos nossos projetos de
civilização. Qualquer outra possibilidade é uma distorção alienante que retira
do Evangelho seu escopo e seu poder transformador.
Leia a próxima postagem.
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