Irmãos, essa é a terceira e última postagem do artigo Missão
Integral: Um Convite à Reflexão
Escrito por Ricardo Quadros Gouvêa publicado no site da FTL
1.
Missão integral não é “estratégia de evangelização”.
Eu peço perdão por iniciar esta parte com algo aparentemente tão banal, mas
também tão fundamental. Vale dizer que eu mesmo já ouvi pessoas, em reuniões da
FTL, manifestarem em suas falas, sem serem corrigidas, estar sob a sombra deste
terrível equívoco. Não há equívoco mais contrário ao espírito da teologia da
missão integral, em minha opinião, do que pensá-la como uma estratégia para a
evangelização. É evidente que os adeptos da teologia de missão integral logo
dirão que o próprio conceito de evangelização ganha novas cores a partir da
adoção da noção de missão integral, que deixa de ser mera conquista de almas
para Cristo, etc. etc. Porém, por outro lado, quem comete esse equívoco ainda
não está, em geral, sob o impacto de uma nova compreensão do evangelho e da
missão da igreja que a teologia de missão integral impõe. De qualquer forma, os
evangélicos em geral tendem a cair ou recair em fórmulas gnósticas que separam
e distinguem o material e o espiritual, o corpo e a alma, num espírito
contrário ao do ensino neotestamentário. Vale a pena, portanto, lembrar e
alertar que, acima de tudo, missão integral não é uma estratégia ou técnica de
evangelização ou, o que seria ainda mais nefasto, de estufamento de igrejas.
2. Missão integral não é “ministério de ação
social”.
É possível que este seja o mais comum e mais perigoso engano no que se refere à
noção de missão integral: confundi-la com o ministério de ação social de uma
igreja local ou uma denominação. Não estamos dizendo que as igrejas não devam
ter tal ministério. Muito pelo contrário. Ministérios eclesiásticos ou
para-eclesiásticos de ação social podem ser um importante instrumento para a
concretização de alguns aspectos do que chamamos de missão integral.
Entretanto, esses ministérios não implicam que haja missão integral enquanto
construto teórico teológico. Não se pode inferir da presença destas agências
que haja missão integral, ou que elas trabalhem sob a égide da missão integral.
E pode, por outro lado, haver missão integral sem que haja ministérios e
agências de ação social, que são, no geral, de caráter meramente
assistencialista, e não percebem a necessidade de instituir instrumentos
políticos que possam gerar mudanças estruturais na vida sócio-cultural e
político-econômica da sociedade.
3. Missão integral não é uma “teoria
missiológica”.
Então, em um nível mais profundo, alguém poderia supor, ao perceber que este
construto teórico afeta diretamente as práticas eclesiais, que se trata de um
construto teórico de teologia pastoral, e, mais especificamente, de
missiologia. A missão integral seria, portanto, uma compreensão específica de
como a igreja faz missão, ou, numa redação muito melhor, como a igreja cumpre a
sua missão. Seria, portanto, uma tese missiológica, mais ou menos nas seguintes
linhas: a igreja cristã tem a missão de pregar o evangelho, mas esta pregação
não se faz apenas com palavras, mas com atos de amor que manifestem o amor de
Deus pelas pessoas através de nós, através das ações das comunidades cristãs. É
evidente que tal compreensão da noção de missão integral está bem mais próxima
do adequado que as concepções equivocadas descritas acima. Percebemos, todavia,
que ela também tem problemas teóricos, enquanto definição conceitual da
endiadys “missão integral”. Em primeiro lugar, esta compreensão pode sugerir
que a missão integral é uma teoria missiológica entre outras, que uma igreja ou
um cristão pode escolher ou não como sendo a sua missiologia. Tal concepção da
endiadys como mera teoria missiológica, portanto, coloca em risco a percepção
de sua necessidade, no sentido filosófico do termo, para a presença do
evangelho. Em outras palavras, ameaça tornar a noção de missão integral algo
extrínseco ao evangelho, e não intrínseco ou essencial no evangelho. E tal
minimização da noção é algo que a teologia da missão integral nunca tolerou nem
pode tolerar. Em segundo lugar, torná-la meramente uma teoria de teologia
pastoral põe em risco a centralidade do conceito na constituição do evangelho,
e essa marginalização do conceito é também algo que a teologia da missão
integral nunca tolerou nem pode tolerar.
4. Missão integral não é “diaconia”.
Antes de mais nada, vamos esclarecer que o termo “diaconia” não está sendo aqui
empregado como sinônimo de ministério de ação social da igreja local, ou com a
idéia de uma “junta diaconal” na igreja local, ou coisas semelhantes. O termo
está aqui sendo empregado para discernir algo que parece ser essencial no
ensino de Cristo, que é servir. Confundir missão integral com ministério de
ação social é banal e totalmente equivocado. Confundir missão integral com
diaconia é bastante desculpável, pois o que proponho aqui é uma filigrana, uma
distinção muito sutil realmente, que já nos lança para o âmbito da teologia
bíblica e sistemática, e nos aproxima de nosso ponto de chegada, que é a
relação entre missão integral e o próprio evangelho de Cristo. Esclareça-se
agora, e desde já, que o evangelho de Cristo não é apenas o perdão de nossos
pecados pelo sangue derramado na cruz. É, antes, nossa reconciliação com Deus
pela união mística com Cristo. É a presença de Cristo em nós, a presença do
Espírito Santo que é o Espírito de Cristo, que determina nossa redenção, nossa
justificação e nossa santificação. A presença de Cristo em nós implica
necessariamente em discipulado, sob o senhorio de Cristo. Portanto, implica em
diaconia, isto é, em serviço, assumir a forma de servo que o próprio Jesus
Cristo assumiu. A diaconia é, portanto, aspecto essencial do seguimento de
Cristo. Quem está em Cristo, serve a Deus e ao semelhante. Sem dúvida que a
prática diaconal de cada cristão no seu seguimento de Cristo parece indicar uma
percepção maior ou menor, mais ou menos consciente daquilo a teologia da missão
integral sugere acerca da natureza do evangelho, mas não é uma marca
inquestionável de que a noção de missão integral tenha sido assimilada ou que,
em outras palavras, a missão integral tenha sido adotada. É bem possível que um
cristão pense na diaconia como um aspecto da vida cristã que nada tem a ver com
missão.
5. Missão integral não é outro nome para a
“teologia da libertação”.
Muitos podem pensar que a teologia da missão integral é uma versão evangélica
da teologia da libertação, cujos principais nomes são majoritariamente
católico-romanos. Há, de fato, mitos pontos-de-encontro. Porém, há também
pontos divergentes, e isso desde os fundamentos. Enquanto a teologia da
libertação tem sido descrita por muitos como uma leitura marxista da Bíblia, e
as evidências apontam para a propriedade desta percepção acerca do referencial
teórico fundamental da teologia da libertação, o mesmo não se pode dizer da
teologia da missão integral, que se propõe, talvez um tanto ingenuamente, como
uma teologia que é produzida apenas a partir da Bíblia, sem utilizar nenhum
outro referencial teórico como chave hermenêutica. Seja como for, o importante
pressuposto por detrás desta comparação é que a teologia da missão integral é
uma teologia, assim como a teologia da libertação. O que significa dizer isso?
Significa que a teologia da missão integral é uma interpretação geral do que é
o cristianismo, do que significa ser um cristão, uma interpretação sobre o
significado do próprio evangelho.
IV. Vórtice Elucidativo
Então, perguntemos agora, ainda que tentativamente, “o que é missão integral”?
Para responder a essa pergunta, temos que aglutinar alguns importantes
componentes da equação, e o faremos por meio de um progressivo afunilamento
teórico.
1. Missão integral é uma teologia bíblica do
evangelho.
Já dissemos que missão integral é uma teologia. Isso é elucidador, mas fica a
pergunta: que tipo de teologia? Parece ser uma teologia bíblica, isto é, uma
tentativa de configurar esquematicamente a instrução bíblica a partir da
própria Bíblia em vez de partir dos loci communes da chamada teologia dogmática
ou sistemática. Há, porém, muitos tipos de teologia bíblica, com diferentes
ênfases. Parece-me que a teologia da missão integral é uma teologia bíblica que
centra toda a reflexão teológica na definição da natureza intrínseca do próprio
evangelho, e quero propor, mais construtivamente agora, que ela o vê como o
cumprimento da grande comissão de Cristo à luz do Mandato Sócio-Cultural do
Gênesis.
2. Missão integral é uma interpretação da Grande
Comissão à luz do Mandato Sócio-Cultural.
O Mandato Sócio-Cultural surge logo nos primeiros versículos da Bíblia,
compondo as primeiras ordenanças de Deus ao homem na Criação. Ler a Grande
Comissão de Mateus 28 à luz do Mandato Cultural é vê-lo como resgatado diante
da redenção em Cristo em face da queda. Em outras palavras, no esquema
Criação-Queda-Redenção, o Mandato Cultural é recuperado na redenção em Cristo
pela chamada Grande Comissão.
O Mandato sócio-cultural de Gênesis nos aponta para o projeto de Deus para a
espécie humana. O projeto não está explicitamente descrito, mas implícito
naquilo que a narrativa bíblica apresenta na forma de comando divino. Ele
inclui: (i) apoio à família e à educação; (ii) apoio à pesquisa científica e
tecnológica; (iii) promoção da nutrição alimentar e, por inferência, de todas
as necessidades básicas para a sobrevivência e saúde de todos, sem exceção de
ninguém; (iv) descanso e lazer para todos, e, por inferência, trabalho para
todos.
Por meio da redenção em Cristo, a sua igreja se torna novamente capaz de fazer
valer o mandato sócio-cultural. Isto é ler a grande comissão como retomada do
projeto divino para a humanidade. Isso é, para mim, a principal base para a
teologia da missão integral.
3. Missão integral é a Missão da Igreja e a
Teologia que serve à Igreja.
A missão da igreja é sua razão de existir. Ela existe para cumprir sua missão,
sem a qual ela não tem sentido algum. Creio que a teologia da missão integral
reconhece isso e propõe que é preciso compreender a missão da igreja em sua
inteireza. Mais que isso, implica também que a teologia da igreja só faz
sentido se feita à luz da missão da igreja, auxiliando-a no cumprimento da
mesma. Se não é assim, é teologia que se impõe sobre a igreja, e que obriga a
igreja a servi-la em vez de servir a igreja. É teologia que atrapalha a igreja
no cumprimento de sua missão. Toda teologia que se preze, creio eu, deve ser
feita a partir de dois motores: o estudo da Bíblia e a missão da igreja.
Alguns dizem que a missão da igreja é adorar a Deus. Paulo ensina, em Romanos
12, que o verdadeiro culto a Deus é oferecer-se em sacrifício vivo, o que
implica em algo mais que a adoração e o louvor na compreensão popular dos
conceitos. Alguns dizem, em contrapartida, que a missão da igreja é evangelizar
o mundo. De fato, mas aqui cabe perguntar o que isso significa. Seria apenas
levar os homens a se decidirem por Cristo? A se tornarem membros de igrejas
evangélicas? Ou seria a difusão do Reino de Deus? Ou seria ainda mais, a
infusão dos valores do reino na cultura e na sociedade?
4. Missão integral é o próprio evangelho.
Missão integral é, talvez, outro nome que se pode dar ao próprio evangelho,
como um cognome, ou um aposto. Como aposto, poderíamos dizer, por exemplo: “o
evangelho de Cristo, isto é, a missão integral da igreja, deve ser o centro da
pregação cristã”, e assim por diante.
Evangelho, como todos sabem, significa “as Boas Novas da salvação em Cristo”.
Eu quero crer que é isso também que significa a missão integral. Se não fazemos
essa identificação, talvez seja porque limitamos, por vício, o escopo do
significado do Evangelho. Salvação em Cristo significa união mística com
Cristo: Cristo em nós, operando nossa justificação e nossa santificação. Cristo
em nós implica em uma transformação espiritual sendo operada; implica na
imitação de Cristo; em outras palavras implica em discipulado. Na verdade, creio
que é preciso afirmar que não há salvação sem a presença do Espírito de Cristo
em nós, e, portanto, sem obediência, sem esvaziamento, sem tomarmos a forma de
servo que Cristo tomou. Em suma, não há redenção em Cristo sem seguimento, sem
discipulado, porque não há evangelho sem discipulado. Seguir a Cristo e servir
a Cristo significa um engajamento naquilo que chamamos de missão integral.
Então, não há outro evangelho, a não ser este: a adoção e a participação na
missão que só pode ser integral. Em hipótese alguma uma missão parcial ou
fragmentária poderá ser chamada de evangelho. Não há missão parcial. E aqui
está a grande falácia por detrás desta expressão, desta endiadys: missão
integral, pois falar em missão integral pode fazer presumir que há outra missão
cristã ou evangélica que seja também válida, e que nãos seja integral, quando
na verdade só há uma missão em Cristo: aquela que inclui a integralidade
daquilo que o Evangelho representa.
O problema é que isso coloca todos os adeptos da teologia da missão integral em
franca e direta oposição à larga e vasta maioria das igrejas evangélicas e do
mundo evangélico, que jamais compreendeu e jamais aceitou a teologia da missão
integral, que certamente não entende a missão da igreja dessa forma, mas antes
pregando e praticando aquilo que os adeptos da missão integral seriam obrigados
a chamar de “missão parcial”.
Só a aceitaram os chamados “evangelicais”, um adjetivo que se usa, em oposição
a “evangélico”, para designar um grupo de evangélicos de difícil localização.
Uma palavra que é um anglicismo, tradução do inglês “evangelical” que, na
verdade, quer dizer “evangélico”, e não “evangelical”. O adjetivo “evangelical”
tende a cair no vazio. Quem são os evangelicais, além dos participantes da FTL?
Mas acontece que, se não há missão parcial, isso tem sérias conseqüências para
quem advoga a missão integral. Assim como uma meia-verdade é, em geral, uma
mentira inteira, também a noção de uma missão parcial é um equívoco. Missão
parcial simplesmente não é a missão cristã, pelo contrário, é uma distorção
perigosa da missão, uma distorção alienante, aviltante e opressora. Não é a
verdadeira missão do corpo místico de Cristo, a Igreja Invisível, que é sempre
missão integral, uma vez que essa é a única genuína missão neotestamentária.
Uma missão distorcida não só não é missão de Cristo, mas presta desserviço a
Cristo, pois é missão feita em nome de Cristo sem ser de Cristo. Isso a
caracteriza, a partir de uma perspectiva neotestamentária, como missão do
anticristo. Toda igreja que se diz cristã, mas rejeita, não por ignorância, mas
conscientemente, a teologia da missão integral, está, ipso facto, sub judice,
como candidata a igreja do anticristo.
V. Palavras Finais
Alguém poderá dizer, agora que desembarcamos no porto final desta caminhada
teórica que compõe esta comunicação, que as conclusões a que chegamos são
apenas óbvias. Diante desta observação crítica, tudo que tenho a dizer é que
concordo inteiramente. Assim já dizia Caetano Veloso que seriam óbvias as
palavras que o índio proferiria em um ponto eqüidistante entre atlântico e o
pacífico. E que surpreenderiam por ser óbvias, pois o óbvio é bom, é claro e é
verdadeiro. É precisamente da obviedade que carecemos, mas não da obviedade
tautológica ou repetitiva, a platitude que não passa de um lugar comum. O que
se pretendeu foi dizer o óbvio que esclarece, que desobnubila, que
desobstaculiza, que ilumina e que tranqüiliza o coração. Não proponho, porém,
sequer que este trabalho específico de limpar o terreno para futuras
edificações esteja completo. Esclareço ainda além, portanto, que este texto
pretendeu apenas iniciar uma reflexão que deve continuar em conjunto agora, num
espírito fraterno e elucidativo.